Traumas e as nossas dores de cada dia

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Você já se perguntou porque está cada dia mais difícil se relacionar, porque tanta violência, agressividade, comportamentos destrutivos, vícios (comida, bebida, jogos, compras, drogas, sexo), ciúme excessivo, individualismo, hiperatividade, intolerância, etc.?  

Já se perguntou para onde estamos caminhando enquanto sociedade?

Por muito tempo, enquanto humanidade, acreditávamos que a razão pudesse nos levar mais longe. Racionalizamos praticamente tudo, tudo que sentimos e vivemos. Entramos no modo automático, trabalhamos, produzimos, consumimos, seguimos o fluxo de “como a vida deve ser”, em meio ao capitalismo moderno e desenfreado. Não é de hoje que o Ter se tornou, para a maioria das pessoas, mais importante que o Ser. Já não nos perguntamos mais: o que será que faz sentido na vida?

Na racionalização de tudo, na maioria das vezes, só vamos reconhecer nossas emoções como uma grande confusão geradora de ansiedades, depressão, dores no corpo, adoecimentos e de comportamentos imprevisíveis e destrutivos como a violência, a agressividade, os vícios e a intolerância.

Pois é, ao longo da história da humanidade fizemos muito bem o caminho de desconectar nossas sensações, emoções e sentimentos do funcionamento geral do nosso corpo. A ponto de não nos permitirmos sentir ou, ao menos, conseguirmos sentir com clareza, as nossas emoções, as nossas dores humanas.

O que estamos sentindo? Quais são os nossos medos e o que fazemos com eles? Quanta raiva guardamos? Quantas horas trabalhamos e quando descansamos? O que fazemos com o que não falamos, com tudo que guardamos? Perdemos a conexão com os nossos afetos!

Para o médico canadense Gabor Maté que trabalha e pesquisa sobre desenvolvimento infantil, saúde, doença, estresse, traumas psicológicos, vícios e outros sofrimentos, descreve que somos uma sociedade traumatizada, reproduzindo de geração para geração os nossos traumas. Ele descobriu através de sua experiência clínica que o padrão comum para praticamente todas as aflições, doenças mentais, doenças físicas e vícios é, na verdade, o trauma. Para ele trauma é: “uma ameaça avassaladora, com a qual você não sabe como lidar”.

Quantos de nós ao longo de nossa história de vida fomos abandonados, humilhados, desconsiderados, sofremos violências físicas e psicológicas? Quantos ganharam todas as coisas que seu desejo pediu, menos a presença afetiva, cuidadosa e o amor necessários ao seu desenvolvimento? Os excessos, ou as faltas, sempre presentes. Estes exemplos não tratam de pais, de filhos ou da família exclusivamente, mas de todos nós, de cada um de nós, que carrega consigo uma história única e, ao mesmo tempo, compartilhada entre gerações.

De que maneira estamos perpetuando as violências que sofremos? As dores que vivemos ou os traumas presentes em nossa história de vida?

Segundo a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2003), a maioria das pessoas é exposta a fatores de estresse extremos, e, experiencia no mínimo, um evento potencialmente traumático ao longo da sua vida. Existem várias situações que podem ser consideradas como eventos potencialmente traumáticos. Morte inesperada de uma pessoa querida, envolvimento em um acidente ou desastre, ameaças, agressão física, violência sexual, psicológica, tortura, abandono, entre outras (Associação Americana de Psiquiatria, 2013).

Na perspectiva psicológica, buscamos amor, aprovação e afeto, essa é a gênese humana, nossa maior necessidade desde o nascimento. E quando não suprimos essas necessidades, que se perpetuam ao longo da vida, desenvolvemos comportamentos que funcionam de acordo com aquilo que acreditamos que somos. Então, se fomos desestimulados, humilhados, desencorajados, se sofremos violências, abandonos, rejeição, isolamento, se fomos excluídos, se aprendemos que não podemos confiar em nós mesmos, porque a ideia do outro é melhor, é assim que, provavelmente, vamos nos comportar e nos relacionar.

Isso não significa que precisa ser assim. Como bem disse o filósofo Sartre: “Não somos aquilo que fizeram de nós, mas o que fizemos com o que fizeram de nós”. Em meio aos sofrimentos que passamos, temos sempre a escolha. A escolha de se questionar e decidir por algo diferente. Esta escolha está ligada à nossa consciência. Consciência, é dar-se conta do que se é, da forma como você está, consigo, com o outro e com as pessoas ao seu redor.

Quanto mais consciente você estiver do que lhe acontece e da forma com a qual se sente, se percebe, maior será a possibilidade de mudança psicológica. É preciso perceber, estar atento ao que lhe acontece, qual é a sua história de vida e decidir como você vai querer seguir e lidar com ela. Nosso papel como seres humanos é aprender e crescer com os sofrimentos que nos acontecem, não nos paralisar diante deles ou reproduzi-los.

Enquanto não tivermos consciência de quem somos e do que sentimos, pouca mudança social será possível. Não precisamos continuar perpetuando dor a nós mesmos e infligir sofrimento aos outros. Ainda temos tempo de desenvolver ou aprimorar a nossa capacidade de afeto, do sentir, de sentir a si mesmo, o outro e o mundo, para conseguirmos fazer boas escolhas para a vida, nossa e do planeta.

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